quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O sopro

Miguel..o que mais me aquecia ao lembrar-me dele provavelmente ninguém entenderia, e gostava que fosse assim. O que duas pessoas fazem durar mais que o tempo senão um átomo de incompreensão que faz sorrir?

Agora, em meus últimos momentos de vida – assegurados cada vez mais pela frieza que me tomava o corpo contrastando com o que me fervilhava o peito – ouvia os murmúrios ao meu redor de forma tão acentuada que soavam como um tambor.
“Por que ela não aceitou o tratamento?” a voz era chorosa mas com um tom de ultraje no final.

“Alguém sabe por que Rita sempre sumia às terças-feiras?” outra voz,; dessa vez me soou bastante parecida com minha falecida tia Eulália. Outro respondeu que não, que Rita sempre fora meio louca mesmo e que por isso habituaram-se todos com sua presunção a mistérios.

Gemi. Falavam como se eu não estivesse presente. Furiosa, fechei os olhos com toda força e desejei que todos fossem carregados por algum vendaval, terremoto, tufão, qualquer coisa que os varresse da face da terra. Tudo bem..ao menos do meu quarto já me satisfaria. Tive uma crise de riso que ninguém viu e mijei o colchão todo, satisfeita comigo mesma.

Miguel..onde ele estaria agora, que boca estaria mordendo além da sua própria? Boca linda aquela..linda boca de dentes afiados continha aquela língua calada!
Desejei morrer agora, nesse instante, com essa lembrança.

E morri.
..

Grazzi Yatña

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Quando não há velório

Eu estava lá, naquela tarde fria e chuvosa, cumprindo à risca o que lhe tinha prometido ainda em seu leito de morte. “Cemitério dos Imortais”, irônico nome dado por alguém que talvez nunca se comovesse com a vida, era agora o endereço para onde me dirigia todas as terças-feiras antes do escurecer.

Achar a quadra do túmulo de Rita fora tarefa fácil, já que era denominada a “quadra dos acatólicos”. Por sinal, a única que permanecera imune de vândalos em busca de cobre e necrófilos de plantão.

Durante o percurso, fui analisando a ironia dos túmulos. Estavam todos neles, reduzidos ao pó, em suas amplas e avassaladoras insignificâncias. Pessoas que viveram décadas carregando o peso da vida e o medo da morte. Por Deus, que contraposto! Velas queimadas pela metade e flores murchas. Granito, mármore e cimento. Covas e valas. De repente, encontro um túmulo sem identificação. Era esse o de Rita, que preferiu assim. Só eu sabia do anonimato pretendido!

Uma agonia inevitável tomara conta de mim: por debaixo de alguns palmos de terra estava o cadáver dela, decerto já decomposto por larvas em sua eterna morada. Achei estranho pensar nisso, quando o que mais tinha em minha memória, era a sensação do seu corpo quente em minha cama.

Sempre lembrarei do que ela disse minutos antes de partir: - Não temas Miguel, porque eu não temo a escuridão que me espera!

De certo modo, isso me aliviou por instantes. Logo achei que deveria acender uma vela em sua memória. Assim eu fiz! Deixei que queimasse lentamente até seus pingos escorrerem entre meus dedos.

Diz um velho ditado que no túmulo se reza de acordo com a religião do morto. Fiz a minha prece, rápida como sempre fora. Coloquei a vela na tampa de cimento da cova e fui embora.

Eu, Rita e os mortos, em nosso perpétuo silêncio.


Luis Surprises