terça-feira, 30 de setembro de 2008

Quando não há velório

Eu estava lá, naquela tarde fria e chuvosa, cumprindo à risca o que lhe tinha prometido ainda em seu leito de morte. “Cemitério dos Imortais”, irônico nome dado por alguém que talvez nunca se comovesse com a vida, era agora o endereço para onde me dirigia todas as terças-feiras antes do escurecer.

Achar a quadra do túmulo de Rita fora tarefa fácil, já que era denominada a “quadra dos acatólicos”. Por sinal, a única que permanecera imune de vândalos em busca de cobre e necrófilos de plantão.

Durante o percurso, fui analisando a ironia dos túmulos. Estavam todos neles, reduzidos ao pó, em suas amplas e avassaladoras insignificâncias. Pessoas que viveram décadas carregando o peso da vida e o medo da morte. Por Deus, que contraposto! Velas queimadas pela metade e flores murchas. Granito, mármore e cimento. Covas e valas. De repente, encontro um túmulo sem identificação. Era esse o de Rita, que preferiu assim. Só eu sabia do anonimato pretendido!

Uma agonia inevitável tomara conta de mim: por debaixo de alguns palmos de terra estava o cadáver dela, decerto já decomposto por larvas em sua eterna morada. Achei estranho pensar nisso, quando o que mais tinha em minha memória, era a sensação do seu corpo quente em minha cama.

Sempre lembrarei do que ela disse minutos antes de partir: - Não temas Miguel, porque eu não temo a escuridão que me espera!

De certo modo, isso me aliviou por instantes. Logo achei que deveria acender uma vela em sua memória. Assim eu fiz! Deixei que queimasse lentamente até seus pingos escorrerem entre meus dedos.

Diz um velho ditado que no túmulo se reza de acordo com a religião do morto. Fiz a minha prece, rápida como sempre fora. Coloquei a vela na tampa de cimento da cova e fui embora.

Eu, Rita e os mortos, em nosso perpétuo silêncio.


Luis Surprises

Um comentário:

Izabel Xarru disse...

'Deixei que queimasse lentamente até seus pingos escorrerem entre meus dedos'.
luís, essa é a morte que trata da vida...veja como uma e outra se lambem!
estou, na verdade, adorando esse começo de prosa. assim: começa com a morte da família (quando grazzi morre miguel, ela fecha a porta do quarto e toma o inteiro fim de um corpo pesado. quando você recebe o néctar em seus dedos, a vida recomeça. seita: re-ligare!
bjos pro casal!